24/06/2010

Metafísica da amizade

Friendship is just a proximity that resists conceptualization and representation (Agamben). Se Agamben estivesse certo, não poderíamos pensar a amizade como um conceito anterior a qualquer forma de experiência. Seríamos obrigados a vê-la como um facto (algo de que estamos perto, uma vivência) e não como uma categoria (aquilo que representamos, criamos ou construímos). Um amigo não seria um 'algo', não teria nenhuma qualidade ontológica ou descritiva, não seria categorial mas vivencial. Um amigo limitar-se-ia a estar, a coexistir, a con-sentir, a sua existência partilharia a nossa existência. Se Agamben estivesse certo, não poderíamos imaginar a amizade como uma metafísica, uma ideia, um platonismo. No entanto, Agamben não pode estar certo, porque a amizade nunca deixa de ser para nós um espaço mental onde construímos e ficcionamos os nossos gostos e dependências. As teorias da amizade são um obstáculo à amizade, escrevi aqui há meses. O que é bem diferente de uma amizade sem teorias. Cada um vive as suas amizades dentro de si.

Uma competência (2)

Os homens que vivem sem a companhia das mulheres, que não aprenderam a estar com as mulheres, parecem quase sempre distantes, senão mesmo incompetentes para os códigos da amizade. Umas vezes porque adquiriram uma amargura e um ressentimento que retraem os amigos. Outras vezes porque viver pacificamente sem as mulheres, celibatários em primeira ou segunda mão, significa que nunca se sentiu na pele um certo tipo de dependência.

Quase sempre, as nossas melhores amizades só nos surgem depois de termos estado apaixonados e não antes. É a amizade que é um sucedâneo do amor e não o contrário. Porque no princípio pensámos que o amor chegava .

Granizo

Está tudo bem, eu e o meu amigo conversamos horas, rimos, celebramos, ouvimo-nos em voz baixa, descobrimos os nossos defeitos comuns. E de repente, a terminar a noite, uma frase fora do sítio, implacável, sinceridade a mais, sensibilidade a mais, cinzas que resolvem cair, o granizo da amizade.

15/06/2010

Uma competência (1)

Se a amizade for uma competência, como explicar que uns a tenham em excesso, enquanto outros precisem de ser ensinados? Como explicar esse desnível de aptidão, talento, esforço, essa necessidade variável entre os amigos, seja qual for a palavra que o caracterize com propriedade. Existe uma competência para a amizade que não foi bem distribuída no mundo, mas não estamos seguros porquê, nem daquilo que precisamos para a adquirir. 

14/06/2010

A reunificação

Uma pessoa passa a vida a criar amizades dispersas que nunca se cruzam. Os amigos de infância, da universidade, do trabalho. Essas amizades representavam facetas e contextos diferentes da nossa vida social. Faziam da amizade como que uma experiência heteronímica. Sucede porém que as redes sociais como o Facebook anulam praticamente todas essas fronteiras. Reunindo todos os amigos numa só categoria, as redes sociais contribuem para reunificar a nossa personalidade múltipla. E sem os nossos velhos muros de segurança, ficamos mais expostos e vulneráveis.

13/06/2010

Casamento

Os amigos conhecem-se, para que sejam amigos. Os casados nem tanto: para que se mantenham casados.

08/06/2010

Contra o amor romântico

O maior inimigo da amizade é o amor; o amor romântico que despreza todos os outros bens. Foram os românticos que destruíram a amizade.

A amizade trágica

Admitamos então que a amizade só pode ser a amizade possível. A dúvida está em saber: possível em relação a quê? Em relação a uma amizade mais ética ou mais perfeita? 

No nosso caso, decidimos que a amizade será de facto a possível, mas apenas porque ambos sabemos que facilmente ela acabaria por se perder noutra coisa. Então, fizemos uma escolha preventiva: optámos por fazer da nossa amizade numa experiência de fronteiras e possibilidades bem definidas. Como amigos não seremos mais do que somos, uma vez que sabemos que poderíamos transformar-nos em mais. Devemos arruinar uma amizade possível com um amor possível? Não sei se me entendem. E no entanto, é verdade que só conseguiremos viver uma amizade possível se a alimentarmos em permanência com a ideia de um amor possível. Esse equilíbrio é o mais difícil de obter. A amizade possível é por isso a amizade trágica.

Coerência

De todas as categorias da amizade, talvez a dos “amigos de infância” seja a mais difícil de enquadrar. É verdade que eles deveriam ser, em certa medida, os nossos amigos autênticos porque souberam resistir à mudança ou mudaram na exacta medida em que nós também mudámos. Tornaram-se, precisamente como nós, amigos apesar da infância ou amigos contra a infância. Contra o tempo e a mudança de estações.

Mas, por outro lado, quantas vezes não conservamos um amigo de infância, não por causa dele, não porque a amizade propriamente resistisse e tivesse razões para resistir, mas porque queremos continuar fiéis a uma certa ideia de infância? Quantas vezes a permanência de um amigo de infância não se explica pela nossa dependência do passado e daquilo que fomos, mas para que na nossa nova condição formada e amadurecida fiquemos em paz com o passado e com a memoria?

Ficar em paz com a memória. As mudanças que nos acontecem na vida são sempre uma perturbação a que assistimos com mais ou menos consciência. O passado conhece muitas maneiras de se intrometer pelo presente. Nunca deixamos de ser o que fomos nem a memória do que fomos. Permanecemos reféns de uma ideia antiga de nós próprios que descobrimos um dia por acaso e na qual continuamos a acreditar por causa de um obscuro dever de coerência.

07/06/2010

O regresso

Por que será que mudamos de passeio sempre que reconhecemos à distância um antigo amigo do liceu que não temos vontade em rever? Receamos o embate com o passado, o protocolo embaraçoso, a falta de assunto? Pensamos que regressar àquele mundo perdido seria sempre difícil e doloroso?

Talvez devêssemos admitir o contrário. Se nos afastamos não é porque nos tornámos noutra pessoa, enquanto o nosso antigo colega permanece igual. Se o evitamos é porque temos receio que ele tivesse mesmo mudado, ao passo que nós continuamos rigorosamente como éramos. Vinte anos depois, temos menos estofo para comparações.