11/11/2009

O muro

Quando uma amizade termina entre equívocos e desilusões, não resistimos a erguer o nosso muro de Berlim contra os ex-amigos. É então que se inicia uma espécie de Guerra Fria entre todos. Sem agressões, desaforos directos, mas sempre em qualquer caso com a ameaça omnipresente e constante de que as hostilidades poderão começar. Para nós, os antigos amigos são a recordação de um fracasso em que também participámos. Por isso hesitamos tanto na distribuição de culpas.

10/11/2009

O prato partido



Em 1936 Scott Fitzgerald publicou na revista Esquire, The Crack Up, uma série de três textos confessionais sobre a depressão que tomou conta do escritor a meio da vida e não o largou até à morte. Depressão, colapso, esgotamento não são sequer palavras certas para traduzir The Crack up. Explica Fitzgerald logo no começo que os textos versavam sobre outras doenças:

There is another sort of blow that comes from within - that you don't feel it until it's too late to do anything about it, until you realize you will never be as good as a man again.

Numa certa fase da sua vida adulta, Scott Fitzgerald viu subitamente isso mesmo: tinha-se partido ao meio, afundado, parado de funcionar. E The Crack Up é o relato soberbo desse naufrágio. Já não era possível regressar à superfície.

Os amigos raramente compreendem gestos públicos de auto-mutilação; raramente aceitam o direito de qualquer pessoa a escancarar o estado em que se encontra ou a sua posição sobre si próprio. Pois, quando os textos de Scott Fitzgerald saíram na Esquire, os amigos reagiram com reprovaçao severa. Hemingway comentou que não conseguia acreditar: "as peças eram miseráveis: pura lamentação em público"; enquanto John dos Passos, mais generoso, escreveu "tudo bem se ele quisesse destruir-se aos poucos mas ao menos que escrevesse um romance sobre o assunto".

Of course all life is the process of breaking down
, avisa Fitzgerald na primeira frase. E tinha razão. Estes três amigos, todos eles, acabaram mal: Fitzgerald, o mais talentoso, morreu com 44 anos; Hemingway estoirou a cabeça; Dos Passos deixou de ser lido.

09/11/2009

Oito meses

Oito meses. Conseguimos. Quando começámos, ninguém acreditou que fosse possível. Deram-nos dias, semanas, lembras-te? Diziam que eras um estalinista, maoísta, talibã da amizade e que eu não passava de um relapso, libertário, hiper-sensível que até se zangou com o último amigo digno do nome que teve. Tudo certo. Tudo errado. Oito meses. Chegámos aqui. Creio que devemos celebrar.

O pior é o som

Converso ao telefone com o meu amigo A.. Fico com a impressão de que ele mede cada palavra e ao mesmo tempo omite tantas outras. Tudo, até as pausas entre as quais vou respirando, me soam a conveniência deslocada, a diplomacia excessiva. Sou um defensor do tacto nas amizades mas não de um certo tipo de pacifismo afectado e profissional. Como nos casamentos mais bem-sucedidos, às vezes as amizades também precisam de uma "bofetada" libertadora. Não, evidentemente, de uma bofetada literal, mas de uma espécie de agressividade velada que deve existir em todas as relações humanas. Não há mal nenhum em recebermos uma bofetada dos amigos quando nos pusemos a jeito e se for essa a única forma de encararmos a realidade. O pior, citando alguém, é só mesmo o som.

06/11/2009

O cérebro



Como funcionará o cérebro na amizade? Que mudanças, variações químicas, nódulos, tremores nervosos? Se existe uma neurociência para o amor, também tem de existir para a amizade. Certamente que alguém deve andar a estudar o assunto cheio de testes e radiografias. Qual será, por gentileza, a parte do cérebro responsável pelas funções da amizade? Os neurotransmissores respondem da mesma maneira, registam diferenças entre as pessoas com e sem amigos? Desconheço tudo. Claro que a amizade pode nem ter impacto suficiente para atingir o cérebro. Seria apenas uma impressão consumida por outras impressões. Mesmo assim hesito. Tem mesmo de haver alguma coisa, uma fisiologia própria, um movimento imperceptível. A amizade não pode ser apenas uma fotografia que vimos de relance.

Saltamos a parte da amizade

11 a.m. I come across an ad from a sincere-looking South Asian fellow and respond. The fellow responds with a number. I call and we agree to hook up for drinks.

6:17 p.m. The fellow and I do a 69.

(Uma das entradas dos diários sexuais dos nova-iorquinos que a New York Magazine tem publicado no seu site).

02/11/2009

Buddies



"Husbands" (1970), John Cassavetes.

01/11/2009

Uma amiga minha

Estou a pensar numa amiga minha, como ela é não só aquilo que acha que é, ela é também aquilo que os amigos acham dela, e aquilo que a família acha dela, e até aquilo que ela é aos olhos de simples conhecidos e completos estranhos. Sobre certas coisas, os amigos têm uma opinião e ela outra. Ela acha, por exemplo, que tem excesso de peso e que não é tão educada como deveria ser, mas os amigos sabem que ela é perfeitamente magra e mais educada do que a maioria de nós. Sobre outras coisas ela está de acordo, por exemplo que é uma companhia divertida, gosta de ser pontual, gosta que as outras pessoas sejam pontuais, e não é muito organizada na limpeza da casa. Talvez seja verdade que as coisas sobre as quais nós todos concordamos fazem parte daquilo que ela realmente é, ou daquilo que ela realmente seria se existisse isso de ela ser aquilo que realmente é, porque quando vou à procura daquilo que ela realmente é, só encontro contradições em tudo: mesmo quando ela e os amigos concordam sobre alguma coisa, pode não parecer tão certo para um simples conhecido, que pode achar que a companhia dela é aborrecida ou os seus quartos demasiado arrumados, e nem sequer estará completamente errado, visto que há alturas em que ela é mesmo aborrecida, e outras alturas em que ela mantém a casa limpa, embora essas alturas nunca sejam as mesmas, pois ela não consegue ser organizada quando se sente aborrecida.

Sendo isto tudo verdade sobre a minha amiga, ocorre-me que também eu posso não saber inteiramente aquilo que sou, e que os outros podem saber coisas sobre mim melhor daquilo que eu sei, embora pense que só posso ser eu a saber tudo aquilo que há para saber e viva como se soubesse. Mesmo me apercebendo disso, porém, não tenho outra escolha senão continuar a viver como se soubesse inteiramente aquilo que sou, embora de vez em quando poderei também esforçar-me só por adivinhar aquilo que os outros sabem que eu não chego a saber.

(copyright Lydia Davis, "A Friend of Mine", The Collected Stories of Lydia Davis, tradução deste vosso criado que não se responsabiliza por eventuais falhas).