30/10/2009

A desamizade corrigida

Entre amigos não é preciso justiça, mas as pessoas justas continuam a precisar da amizade.

É uma das frases mais citadas de Aristóteles, extraída da sua Ética a Nicómaco. O que diz Aristóteles é que os amigos não precisam da justiça porque já estão de certo modo acima: são amigos, e por terem atingido esse lugar cimeiro, já possuem a última virtude. Diversamente, os justos ainda precisam da amizade e os injustos precisam mesmo das duas qualidades: da justiça e da amizade.

Se Aristóteles tiver aqui razão e admito que tenha, precisamos de enfrentar as suas consequências. Sendo a amizade um bem superior à própria justiça, todos os problemas de que uma amizade em concreto possa padecer, todas as situações de desamizade, não poderão ser resolvidos tal como se resolvem as injustiças. Uma injustiça ainda poderá ser corrigida com justiça; é até normal que assim seja. Mas poderá uma desamizade ser corrigida com amizade? Quando um amigo se desilude com outro, ou quando um amigo conspira contra outro, poderão tais desamizades ser corrigidas com amizade? Não: empiricamente, uma desamizade, ao contrário de uma injustiça, não poderá ser suprida com amizade. Uma desamizade significa justamente a ruptura da amizade, mas uma injustiça não representa a ruptura da justiça. Bem sei que Aristóteles nunca falou de desamizade. Só que se existe justiça e injustiça, é normal que também exista amizade e desamizade. Certamente que Aristóteles, tendo pensado em tudo, pensou também nesse assunto.

Por isso, a frase de Aristóteles também poderia ser dita da seguinte maneira: Entre amigos não é preciso justiça, mas entre ex-amigos é aconselhável.

Princípio da desigualdade

Não devemos esperar que a amizade seja uma convenção entre iguais. A amizade só pode ser uma experiência desequilibrada e anti-igualitária. Para não fracassar é preciso que duas pessoas aceitem, com tolerância e resignação, o seu lugar na hierarquia. Um mais inteligente do que o outro. Um mais bonito do que o outro. Um mais rico do que o outro. Se formos suficientemente lúcidos, tomaremos consciência dessas diferenças sem deixar que elas nos atinjam e sem nunca as exibirmos como arma. Faz parte da amizade manter certas reservas, certos silêncios.

O que sabemos melhor sobre a amizade é que nunca pode ser uma democracia. Quando muito, a amizade é uma aristocracia aberta, porque os aristocratas de uma amizade podem perfeitamente ser os camponeses de outra. Na amizade ninguém tem poder o tempo todo.

Anatomia de um começo

Vi-o sentar-se numa mesa do café onde estou agora. Pousou os livros. Eram cinco, todos do mesmo escritor: W G Sebald. Alinhou-os uns por cima dos outros. Abriu um, Austerlitz, ligou o computador, começou a escrever.

Pensei logo que era estudante de literatura, a completar uma tese ou algo do género. Tive impressão de que ia tirando notas, que copiava partes do livro. Talvez fosse um especialista em Sebald, por pior que isto me soasse. Especulei sobre o que estaria ele ali a fazer, porquê aquele monte de livros de um único escritor. Quis fazer-lhe essa pergunta. Hesitei. Sempre o velho instinto de precaução: deixa a vida dele, se não ele também não irá deixar a tua. Todos os dias celebramos tratados de não-amizade seguindo à risca este princípio.

Mas não. Desta vez mete-te na vida dele; faz perguntas; as pessoas gostam que lhes façam perguntas. Fiz. E fiquei a saber que ele não era nada estudante de literatura; estava a terminar direito, curso que lhe saíu caro mas do qual até tinha gostado alguma coisa. Os livros? Sebald era o seu escritor preferido e estava agora a relê-lo do princípio ao fim. Quis saber se conhecia. Eu disse que sim. Perguntou-me se eu gostava de algum livro em particular; respondi que não tinha lido muito mas que se tivesse de escolher também seria Austerlitz. Citei o nome de um ensaio que aparece salvo erro em Campo Santo: "Kafka vai ao cinema". Ele não só conhecia como mantinha uma verdadeira veneração pelo texto. Falámos depois dos escritores americanos, comigo a explicar porque acho que os três melhores são Philip Roth, Cormac McCarthy e Bret Easton Ellis. Pynchon, disse ele. Nunca consegui ler, disse eu. Perguntou-me se eu tinha lido a entrevista que Philip Roth dera na véspera ao New York Times dizendo que os leitores de romances não irão sobreviver e que o género tem os dias contados. Sim, tinha lido. Discordámos os dois. Fomos veementes. Falámos sobre isso, falámos sobre tudo. Estivemos horas.

Ainda me lembro do primeiro dia de enamoramento que tive pelo meu mais antigo amigo. Foi um encontro em tudo semelhante a este. Foi uma paixão verdadeira, idealizada, platónica, que também começou pelo gosto que ambos tínhamos pela literatura e pelo mesmo acordo, não de opiniões, mas de sensibilidades. Porque não é só no amor que eles acontecem: esses dias principais em que uma amizade nos parece tão perfeita e incorruptível que é mesmo uma pena, uma lástima, que o tempo se encarregue de estragar tudo.

27/10/2009

Amizade ou algo menos

"Para amizade ou algo mais", escrevem os solitários nos anúncios de dating espalhados pela imprensa. Que eu saiba, ainda ninguém teve a feliz ideia de propor "amizade ou algo menos". Mesmo que fosse mais seguro, mais rigoroso e certamente mais claro.

26/10/2009

Falhas de comunicação

A última mulher de quem tentei ser amigo, achou que eu estava interessado em mais. Resultado: não ficou nada, nem amor nem amizade. A última mulher de quem estive interessado, achou que eu apenas queria ser amigo. Resultado: também não ficou nada, nem amor nem amizade.

Pode ter sido por uma coincidência absurda, macabra, astrológica. Pode ter sido porque, em ambos os casos, as duas queriam simplesmente coisas diferentes. Ou pode ter sido por outra razão mais credível e mais trágica: a quase absoluta impossibilidade de tornarmos as nossas intenções claras para as mulheres. Talvez, mas só talvez, porque nem nós sabemos ao certo o que queremos. Entre homens e mulheres, as amizades tendem para não ser muito mais do que falhas de comunicação.

"A amizade que é uma proximidade" (Agamben)



O que é a amizade? Amizade é isto: eles estão tão próximos um do outro que mal se conseguem distinguir.

(Giovanni Serodine, I Santi Pietro e Paollo sulla via del martirio (1625), Museu de Arte Antiga de Roma).

Intimidade

Poucos momentos nos incomodam tanto numa conversa como a intimidade que não pedimos ou não desejámos saber. Encaramo-la como informação a mais, disfarçamos quase sempre o nosso desagrado, e tentamos impedir à partida o que o outro tem para dizer. Detestamos ser surpreendidos por confissões que nos parecem descabidas e deslocadas.

Se os segredos alheios nos oprimem não é porque nos consideramos indignos desses segredos; nem porque os outros são indignos de nos ter como ouvintes. O que pensamos é que todas essas revelações a despropósito nos atiram para uma relação sem saída. Antes que mostrássemos vontade de entrar, já fomos expropriados da possibilidade de sair, pelo menos sem provocar danos nas expectativas dos nossos amigos.

Confio-te aquilo que não me pediste para receber a confiança que me não podes dar. Um belo paradoxo.

A intimidade forçada pretende obrigar-nos à amizade forçada. Mas a amizade não é um dever. A amizade é um direito.

25/10/2009

A rejeição (2)

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: a rejeição. Julgar se uma amizade merece ou não ser vivida.

A rejeição

Aconteceu-me uma vez rejeitar um amigo. Creio que uma única vez. Uma recusa explícita, por motivos de segurança ou por achar que eu devia estar primeiro. Quando penso nisso, arrependo-me, envergonho-me. Era uma noite de Julho num dos verões longos que passei em Santa Margarida. O meu amigo estava a cumprir serviço militar. Não tinha jeito nenhum para aquilo. Queria ser médico, sentia urgência em tratar da vida. Tímido, medroso, delicado, via-se que lhe custava ter de obedecer a quem supunha abaixo dele. Eu percebi tudo; não foi difícil. Percebi não só como ele era, mas também porque estava em sofrimento num ambiente de falsas patentes e reputações. Percebi aquela ansiedade porque era igual à que eu próprio trazia. Porque ele não era bem ele. Ele era eu.

O mais natural era pois que nos tornássemos amigos, uma vez que gostávamos de estar um com o outro e eu me revia nas suas características. Mas não tornámos. Eu andava nessa altura numa guerra frenética comigo mesmo. Não havia tréguas possíveis. A fraqueza do meu amigo, por ser também a minha, eu não a suportava. Nas poucas alturas de maior intimidade que tivemos entre os dois, desviei-me sempre e abortei qualquer exposição que pudesse vir da minha parte. Aquela amizade pedia tudo ou nada. Ou seríamos íntimos, ou estranhos. Não havia terceiras-vias. Esta rejeição é uma das minhas culpas inapagáveis.

Transacções

Segundo Ian Buruma no seu mui recomendável "Murder in Amsterdam" - o relato do assassinato do cineasta holandês Theo Van Gogh -, este conseguia ser um amigo leal embora exigisse inequívoca lealdade em troca.

23/10/2009

Um amor envergonhado

Digamos porque não se chama ao amor amizade. Entre as duas coisas há esta diferença: o amor é uma paixão que tem mais de desejo que de prazer; e a amizade é uma afeição reverente, ou um amor envergonhado, que tem mais de prazer do que de desejo. O amigo pretende para o que sempre ama, e o amante para o que pode deixar de amar. Um cuida de si, outro descuida-se de si.

A Arte Da Galantaria, D.Francisco de Portugal

(Obrigado, Nuno, tão maravilhosamente escrito isto).

Aforismos de campanha

Há os que só conseguem ser amigos daqueles que verdadeiramente não respeitam muito.

O que sabemos dos nossos amigos? Talvez mais do que eles gostariam, talvez menos do que precisaríamos.

Amigos que desconfiam por sistema de outros amigos. Pistoleiros com a mão no coldre sempre à espera, no momento do disparo, de alegar legítima defesa, embora dessa vez não houvesse ataque.

A boa-vontade

De todas as definições que pesquisei, creio que apenas Cícero se refere à amizade como um acordo completo entre duas pessoas unidas pela boa-vontade. Quase tudo o resto presente nas definições nós já conhecemos e pode ser lido no dicionário mais próximo: afecto mútuo, confiança, companheirismo. Mas a boa-vontade é um preceito mais exigente, porque pressupõe - e não consigo dizer isto de outra maneira - uma disposição consequente e translúcida para agir à altura da amizade, para fazer as coisas bem. Na biografia duma amizade experimentaremos muitas vezes períodos de desconfiança, remorso, distanciamento. Mas a boa-vontade não se pode extinguir porque se se extinguir é sinal de que andamos enganados e a enganar os outros. A boa-vontade parece ser tudo, vou anotar.

19/10/2009

Em defesa da rotina

Joseph Brodski em "In Praise of Boredom" (tem o meu voto para o concurso dos melhores ensaios de sempre):

But, whether rich or poor, you will inevitably be afflicted by monotony. Potential haves, you'll be bored with your work, your friends, your spouses, your lovers, the view from your window, the furniture or wallpaper in your room, your thoughts, yourselves. Accordingly, you'll try to devise ways of escape. Apart from the self-gratifying gadgets I mentioned before, you may take up changing your job, residence, company, country, climate; you may take up promiscuity, alcohol, travel, cooking lessons, drugs, psychoanalysis.

In fact, you may lump all these together, and for a while that may work. Until the day, of course, when you wake up in your bedroom amidst a new family and a different wallpaper, in a different state and climate, with a heap of bills from your travel agent and your shrink, yet with the same stale feeling toward the light of day pouring through your window.

É da natureza da amizade ser monótona, cansativa, repetitiva. Sempre os mesmos amigos, os mesmos temas, as mesmas conversas. Ao fim de algum tempo cansamo-nos mesmo dos amigos; e precisamos de outros como cura para esse aborrecimento. Até nos aborrecermos outra vez e irmos à procura dos primeiros, como se aquele distanciamento nunca tivesse ocorrido nem sequer na nossa cabeça. Nas amizades mais sólidas andamos sempre a largar e a reencontrar os mesmos amigos. A amizade não é um desporto radical.

A amizade também funciona a pilhas; liquida-se em prestações suaves; cria rotinas por consentimento mútuo. Todos aqueles que abominam rotinas costumam dar-se mal com a monotonia da amizade. Já vi muita gente perder-se apenas porque interpretou os primeiros sintomas de saturação na amizade como decadência irremissível, começando a agir como se a amizade estivesse no fim. Os amores monótonos podem ser amores em crise; mas as amizades monótonas não são amizades em crise. São amizades robustas e prontas para se cansarem tantas vezes quanto for possível. Quando começarem a sentir a superstição da monotonia na amizade só têm uma coisa a fazer: desligar o telefone, dizer as despedidas. É um pouco aquilo que Jorge Luís Borges dizia: "hoje fingimos que nos separamos, mas ver-nos-emos amanhã".

16/10/2009



Obras em curso. Seremos breves.

09/10/2009

Um caso concreto

Como Tchekhov era escritor, sabia que tudo o que as pessoas dizem sobre o amor pode ser poetizado e enfeitado. (Se não existisse a ideia do amor, muitos talvez nem sequer se apaixonariam). Mas como também era médico, achava que só podemos perceber o sentimento amoroso individualizando e desfiando cada caso concreto.

No conto que tem o título "Sobre o Amor", Tchekhov escreve isso mesmo:

Uma explicação que, aparentemente, serve para um caso já não se aplica a dez outros, e o melhor, a meu ver, é esclarecer cada caso em separado, sem tentar generalizar.

Não há nenhuma razão para não aplicarmos o mesmo princípio à amizade. Podemos pensar que sendo a amizade naturalmente poligâmica as explicações e os sintomas tendem a repetir-se, superficiais que também são. Mas essa ideia é um erro. A amizade, tal como o amor, é sempre um caso concreto.

08/10/2009

Sabedoria oriental

Network society

A amigo B casado com C amigo de D inimigo de A apaixonado por E hostil a B.

Esta complicação de relações em rede é bastante comum neste tempo em que as nossas amizades se formam em primeira, segunda e, por vezes, terceira mão. E são sempre difíceis os dilemas éticos que daqui resultam.

Reparem que para proteger a segurança dos seus círculos pessoais, A, B e C enfrentam situações de óbvio desconforto. D e E são os perturbadores da série. Todos são obrigados a defender as suas relações contra mal-entendidos, danos indirectos, encontros evitáveis, ao mesmo tempo que estabelecem hierarquias racionais entre maridos, mulheres e amigos.

O resultado final acaba por ser um pouco este: C precisa de ser cuidadoso na sua relação com D de maneira a não atingir A e, por reflexo, também B. A é obrigado a gerir a sua relação com E, salvaguardando sempre a posição de B. E quanto ao próprio B, está metido entre duas frentes de tensão: A e C e A e E. Esse não tem um destino fácil.

Bem sei que isto parece um puzzle de peças que não encaixam. Nos tempos que correm, quando toda a gente está cada vez mais perto de toda a gente, a amizade deixou de ser uma experiência puramente individual, sujeita quando muito às regras do bom-senso. Tornou-se, digamos assim, uma técnica de gestão política. 

07/10/2009

Mãe-natureza

Nature assigns the Sun - 
That - is Astronomy - 
Nature cannot enact a friend - 
That - is Astrology.

Emily Dickinson

Doenças da amizade

O século XIX mostrou as doenças do amor, como o romantismo e os suicidas. O século XX trouxe as doenças do sexo, como a sida e a impotência por motivos de stress profissional. Neste nosso obscuro século XXI as novas doenças só podem ser as da amizade. Porque são as únicas de que todos sofremos em silêncio e as únicas que ninguém investigou.

Histórias da amizade

Há amizades que morrem pela velhice e pelo tempo. Outras terminam por nunca saírem do estado de juventude e imaturidade. Nuns casos sofremos, noutros não: somos nós até que declaramos o óbito. Nunca sabemos, ao começar uma amizade, como é que vai ser dessa vez; não conseguimos antecipar o que quer que seja. Na amizade, toda a sabedoria que adquirimos, quando a adquirimos, é sempre histórica e retrospectiva. Não existe uma filosofia da amizade. Quando muito, existem histórias da amizade. Vivemos segundo o passado. 

Quinze minutos

No sábado dei com um conhecido meu já não sei bem onde. Amigo de uma amiga, conheci-o uma vez à porta do teatro; falámos um bom bocado. Não fiquei com nenhuma opinião sobre ele. Mas reencontrei-o neste sábado e posso dizer que foi penoso. Vi que já não tinha muito para lhe dizer. Por mais que me esforçasse, não saía nada. E logo percebi porque estava eu ali num esforço meio-fundista lutando por uma frase e não aparecia nada: os meus 15 minutos de conversa com o sujeito tinham sido usados no dia em que nos conhecemos.

Andy Warhol antecipou em tempos que, na sociedade do espectáculo e da televisão, todos teríamos os nossos 15 minutos de fama. Eu acrescento que todos teremos também 15 minutos de conversa com cada ser humano que nos passar pela frente. Quinze minutos em que trocamos delicadezas, comentamos amenidades, fazemos perguntas catalogadas. E depois acaba o tempo. Ouvimos os acordes da despedida, ao mesmo tempo que alguém sugere um almoço que nunca se irá realizar. 

É sempre difícil os nossos 15 minutos de vida social gerarem uma amizade. Ou hesitamos nós, ou hesitam os outros. Talvez porque aprendemos à nossa custa que a amizade não é um bilhete de ida e volta e ninguém quer arriscar um destino incerto.

06/10/2009

They know me better than that

I heard it from my friends
About the things you said

But they know me better than that
They know me better than that

They know my weaknesses

(...)

How can a view become so twisted?

Depeche Mode, "The Things You Said"


13:37

Até às 13:36 ainda éramos amigos; às 13:37 não sei. 

Dicionário

amizade: s. f.
1. Afeição recíproca entre dois entes.
3. Concordância de sentimentos ou posição a respeito de algum facto.
3. Boas relações.
4. Aliança, acordo ou pacto.
5. Atitude ou gesto de benevolência.

Esclarecidos? Nem por isso.


Responder ou não responder

Toda a amizade começa por uma pergunta indiscreta; uma pergunta que atiramos a outra pessoa, como um teste ou uma ousadia. Mas nunca sabemos como é que ela irá reagir. Uns conseguem fugir da pergunta, fugindo assim também da amizade que acabámos de propor. Outros respondem entalados em reservas e sensibilidades; e uma parcela mais excepcional chega a responder com aspereza, provavelmente ofendida pela nossa invasão. Talvez por isso, a linha que separa a amizade do desentendimento é quase sempre muito estreita. Um amigo é sempre alguém que nos respondeu como queríamos da primeira vez; alguém que começou por nos perceber. 

05/10/2009

Temporary sort


I'm all alone this is a holiday
Some bloody holiday,
My friends have gone away
They're of the temporary sort I think

God Help The Girl, Musician, Please Take Heed

01/10/2009

As regras da amizade

Sou convidado para um jantar doméstico. Em casa de R., o meu amigo mais recente. Aqui há tempos, escrevi que não sabia bem se já éramos amigos. Este convite era um indício. Aceitei, claro. Estavam outros amigos dele; reconheci dois; conheci também a mulher. À mesa enchemos conversa: trabalho, política, eleições, regimes semi-presidenciais. Até acabarmos no tema mais ou menos perene em qualquer aglomeração humana num sábado à noite: as relações entre homens e mulheres, o que querem uns e o que querem outras. Ainda há alguma coisa válida para inventar sobre isto?

Não sei. Mas pedi a palavra. Fez-se silêncio súbito, aqueles momentos feéricos de um jantar em que todos se calam ao mesmo tempo e quem estava a falar sente que ganhou uma responsabilidade acrescida e terrível. Citei então um estudo que tinha lido há pouco tempo no "New York Times" que sustentava a tese de que o desejo nas mulheres não é "relacional mas narcisista". Séculos a acreditarmos que o desejo das mulheres está dependente duma esfera de "intimidade" e "confiança" nas relações, quando na realidade o que elas procuram é ser objecto de cobiça "homo-erótica". Tudo mais primitivo e narcisista. Resumindo: o que tu queres sei eu.

Acrescentei, quase a justificar-me, que este era só um estudo académico e eu não podia garantir a sua consistência. De qualquer maneira, assim que me calei percebi imediatamente que tinha surgido uma certa tensão entre R. e a mulher, pelo desconforto evasivo com que ele me ouviu e pelos comentários aprovadores que ela me fez. R. ridicularizou o cientismo barato que tira conclusões não se sabe bem a partir do quê. A mulher recusou tudo o que ele disse.

Não tomei parte. Embora a prudência me recomendasse algum recato, não consegui deixar de pensar: haverá ainda sexo entre R. e a mulher? Ou serão eles outro casamento em declínio, mutilado pelo fim do desejo e por uma revolta surda e crescente como são todas as revoltas femininas? Dois minutos a pensar, até parar de pensar. Chegou o café.

Cada amizade define-se pelas regras de comportamento que cria. Do que não se pode falar, deve guardar-se silêncio. Na minha jovem amizade com R., eu tinha acabado de quebrar o nosso código de conduta.