Vi-o sentar-se numa mesa do café onde estou agora. Pousou os livros. Eram cinco, todos do mesmo escritor: W G Sebald. Alinhou-os uns por cima dos outros. Abriu um, Austerlitz, ligou o computador, começou a escrever.
Pensei logo que era estudante de literatura, a completar uma tese ou algo do género. Tive impressão de que ia tirando notas, que copiava partes do livro. Talvez fosse um especialista em Sebald, por pior que isto me soasse. Especulei sobre o que estaria ele ali a fazer, porquê aquele monte de livros de um único escritor. Quis fazer-lhe essa pergunta. Hesitei. Sempre o velho instinto de precaução: deixa a vida dele, se não ele também não irá deixar a tua. Todos os dias celebramos tratados de não-amizade seguindo à risca este princípio.
Mas não. Desta vez mete-te na vida dele; faz perguntas; as pessoas gostam que lhes façam perguntas. Fiz. E fiquei a saber que ele não era nada estudante de literatura; estava a terminar direito, curso que lhe saíu caro mas do qual até tinha gostado alguma coisa. Os livros? Sebald era o seu escritor preferido e estava agora a relê-lo do princípio ao fim. Quis saber se conhecia. Eu disse que sim. Perguntou-me se eu gostava de algum livro em particular; respondi que não tinha lido muito mas que se tivesse de escolher também seria Austerlitz. Citei o nome de um ensaio que aparece salvo erro em Campo Santo: "Kafka vai ao cinema". Ele não só conhecia como mantinha uma verdadeira veneração pelo texto. Falámos depois dos escritores americanos, comigo a explicar porque acho que os três melhores são Philip Roth, Cormac McCarthy e Bret Easton Ellis. Pynchon, disse ele. Nunca consegui ler, disse eu. Perguntou-me se eu tinha lido a entrevista que Philip Roth dera na véspera ao New York Times dizendo que os leitores de romances não irão sobreviver e que o género tem os dias contados. Sim, tinha lido. Discordámos os dois. Fomos veementes. Falámos sobre isso, falámos sobre tudo. Estivemos horas.
Ainda me lembro do primeiro dia de enamoramento que tive pelo meu mais antigo amigo. Foi um encontro em tudo semelhante a este. Foi uma paixão verdadeira, idealizada, platónica, que também começou pelo gosto que ambos tínhamos pela literatura e pelo mesmo acordo, não de opiniões, mas de sensibilidades. Porque não é só no amor que eles acontecem: esses dias principais em que uma amizade nos parece tão perfeita e incorruptível que é mesmo uma pena, uma lástima, que o tempo se encarregue de estragar tudo.
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