22/09/2009

António e Cleópatra


É possível que Cleópatra só quisesse salvar o Egipto, jogando tudo para seduzir Marco António e virá-lo contra o poder de Roma. Ninguém sabe o que pensa uma mulher. Embora fosse um político experiente, Marco António era demasiado vulnerável à lisonja feminina. Era um pinga-amor na política, como também os há. Gozando de grande prestígio no Egipto cujas províncias administrava, António foi recebido por Cleópatra num banquete que só podia trazer água no bico. Encamou com ela logo na primeira noite. 

Na tragédia de Shakespeare, António e Cleópatra, por sinal depois de Hamlet a peça de que mais gosto, somos atirados para dentro de um conflito que põe em risco o Império Romano. Shakespeare localiza a tragédia na paixão destruidora entre duas figuras históricas: Cleópatra e Marco António. Sozinhos, os dois já são temíveis por si; unidos num erotismo que move montanhas, formam um par ainda mais poderoso que ameaça Roma e promete recompor o mundo. 

À superfície, este é um conflito entre Roma e o Egipto, entre o Ocidente e o Oriente ou entre Marco António e Octávio, o seu amigo-inimigo no triunvirato, que declara guerra ao par amoroso e acaba no fim por vencer Marco António (na batalha de Accio, na foto). De facto, é isso tudo. Mas a relação de forças que Shakespeare pretende mostrar é bastante mais complexa para ser resumida a esse choque de civilizações. É a oposição entre um mundo político, racional e organizado e outro mundo dominado pelo prazer, indisciplina e a instabilidade do amor físico. Na peça de Shakespeare a ameaça maior que pesa sobre Roma não vem dos outros impérios nem dos outros exércitos. Vem do móvel metafísico que é a cama de António e Cleópatra.

Tão longe vai essa oposição, esse móvel metafísico, que Marco António, por causa de Cleópatra, abandona tudo: a própria mulher, a participação no triunvirato, a antiga fidelidade a Roma, o prestígio adquirido como militar nas campanhas do Império. E claro: também abandona os amigos. Porque o prazer repetitivo que existe na amizade não se compara ao prazer primitivo que se retira do amor. E António e Cleópatra capta na perfeição esse duelo inglório entre o amor e a amizade. Um duelo que a amizade está sempre a perder. 


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